27.5.04

Às vezes parece que o Diabo fica entediado lá no inferno e vem até a Terra para se divertir às nossas custas. Foi o que aconteceu há três dias, quando resolvemos reunir a família da minha namorada para contar sobre a gravidez. O resultado da confusão toda: um cunhado de tapa-olho e uma mulher grávida me tratando da forma mais fria possível durante dois dias. Não tive culpa do que aconteceu com o olho do Edu, foi só mais uma conseqüência da falta de jeito do meu sogro. Quanto a essa mulher que anda pelo apartamento sem falar comigo, bem, acho que eu mereço. Não que a coisa tenha acontecido da forma como ela pensa que aconteceu. O negócio é que ela se levantou para ir ao banheiro e eu fiquei distribuindo as taças. Minha sogra perguntou a que se devia toda aquela cerimônia. Eu falei que não era nada, que assim que ela voltasse do banheiro contaria para todos. E foi aí que o Diabo entrou na história:
– E depois deve voltar pro banheiro de novo. Sabe como é mulher grávida.
Falei sem perceber. Sabe quando você acha que só pensou uma coisa, olha em volta e descobre que na verdade fez um comentário em voz alta? Pois então, foi o que aconteceu. Fez-se o silêncio na sala. Quebrado pelo meu sogro:
– ELA TÁ GRÁVIDA???
Lá do banheiro minha namorada pensou que fosse a minha voz anunciando a gravidez. Como se eu fosse mesmo capaz de fazer algo assim, gritar para todo mundo a notícia que deveria ser divulgada por ela. Enfim, estava formada a confusão. Ela veio do banheiro feito um míssil, o olhar de ódio cravado em mim. Eu – que tentava me desvencilhar de minha sogra, então dependurada no meu pescoço – corri para abraçar minha namorada. Eu sabia que ia apanhar, no mínimo. Foi aí que Satanás, talvez arrependido do que acabara de fazer comigo, resolveu interferir novamente: meu sogro foi estourar o champanhe, a rolha voou e foi bater no olho do Edu. As atenções se desviaram para ele. Até eu fingi alguma preocupação com o babaca do meu cunhado. Tudo para escapar da ira de uma mulher grávida. No entanto, quando os pais dela saíam para levar o filho ao hospital, ela deu um jeito de rosnar para mim:
– Você me paga por essa...
E aí começou o inferno. É horrível quando ela resolve não falar comigo, porque ela não fala mesmo. Nada de gestos, acenos, bilhetes, nada! É como se eu não existisse. Nas primeiras horas eu tentei pedir desculpas, contar minha versão da história, mas não adiantou. Então entrei no jogo. Agüentei durante dois dias, até ontem. Hoje de manhã eu saí para trabalhar já disposto a me reconciliar com ela de qualquer forma quando voltasse. Fui almoçar com o Jair, para ver se ele me dava alguma idéia de como fazê-lo.
– É, rapaz... – Ele disse – Situaçãozinha complicada, essa sua. Mas também, o que é que você tem na cabeça?
– O Diabo...
– Hein?
– Esquece, esquece! Eu sei lá por que fiz aquilo! O negócio é que quero desfazer e não sei como. Você vai me ajudar ou vai ficar aí me criticando?
– Quero te ajudar, você sabe. Mas é difícil, pô! Ela deve estar uma fera, não?
– Você não tem idéia.
– Hum. Que tal umas flores?
– Aí é que ela me expulsa de casa. Você acha que alguma mulher ainda cai nessa?
– É, é verdade... Esse negócio de fazer burrada e depois tentar agradar nunca dá certo.
– Pois é. E então?
– Eu sei lá!
– Você não sabe?
– Não.
– Grande amigo você é...
– OLHA A CAGADA QUE VOCÊ FEZ!
– Humpf.
Voltei do almoço ainda sem idéia do que fazer. No fim da tarde, saí do escritório desanimado com a perspectiva de encontrar uma mulher hostil. Cheguei em casa e tentei puxar assunto:
– Oi.
– ...
– Como você está?
– ...
– Sentiu enjôos hoje?
– ...
– Não vai falar comigo?
– ...
– Então tá. Vou ali ouvir uns discos, espero que você não se importe.
– ...
– Beleza.
Fui até a prateleira e peguei o LP que havia deixado separado para ouvir. The Piper At The Gates Of Dawn, primeiro disco do Pink Floyd. Puxei o bolachão de dentro da capa, botei no prato, posicionei a agulha e me recostei na poltrona. Só que, quando o disco começou a tocar, em vez de Astronomy Domine eu ouvi Sá Marina, do Wilson Simonal. Levantei-me sem entender nada. Olhei o selo do LP. Alegria, Alegria vol. 2. "Ué...", pensei. Procurei o disco do Simonal no meio da minha coleção. São mais de 500 LPs mais ou menos organizados por estilo e por nome do artista. Acontece que estavam todos fora de ordem. Demorou um pouco, mas acabei percebendo o que acontecia. Olhei para minha namorada e ela estava com um meio-sorriso no rosto.
– Você trocou a capa de uns LPs, aqui? É isso?
Ela fez que não com a cabeça. Bom, já era uma forma de comunicação.
– Você trocou a capa de TODOS?
Acenou que sim.
– E é essa sua vingança? Pffff, que coisa besta. Arrumo isso rapidinho.
– Boa sorte – ela disse. – eu vou dormir.
Ainda eram oito da noite, mas nem quis discutir. Ela tinha falado comigo, já era alguma coisa. Entreguei-me ao trabalho de colocar meus LPs de volta nas capas correspondentes e reorganizar tudo. Dentro da capa do Alegria, Alegria vol. 2 estava Samba Esquema Novo, do Jorge Ben. No lugar do disco do Jorge Ben, estava Let It Bleed, dos Rolling Stones. Uma zona. O obsessivo-compulsivo que há em mim queria gritar e sair correndo. Contive-o aos tapas, porém, e prossegui com o trabalho. Fui terminar já passava da uma da manhã. A última capa era de Krig-Ha Bandolo, do Raul Seixas. Coloquei o disco correto dentro dela e enfim encontrei o The Piper At The Gates Of Dawn. Junto com ele, um bilhete dela:
"Se ainda estiver inteiro depois desse trabalho todo, encontre-me no quarto. Precisamos fazer as pazes."

Fui até o quarto e a encontrei acordada e muito bem disposta. Foi uma noite e tanto. Minha namorada é bem amalucada, às vezes, mas sabe ser original quando quer.

22.7.03

Panettone com maionese. PANETTONE COM MAIONESE! Eu mereço. E ainda se fosse só isso... O problema maior é que todas as mulheres parecem tirar do DNA um pacotão de conselhos assim que uma delas engravida. Como explicar, por exemplo, que a Marininha – que nunca sequer sonhou em ter filhos; nem irmãos tem – tenha se tornado de uma hora para outra a maior conselheira de gestação para minha namorada? E é cada conselho... As duas devoram as páginas de um livro, O Bebê na Era de Aquário. A Marininha tem verdadeira devoção pela autora, uma americana oxigenada de olhar aguado e sorriso enjoativo. E minha namorada embarcou nessa. Ciência? Ginecologia? Obstetrícia? Pré-Natal, Ultrassom? Para que tudo isso, se temos os astros para nos guiarem, não é mesmo? A depender da Marininha, saberemos o sexo do bebê de acordo com a fase da lua e o parto será feito por uma índia velha e sombria balançando um chocalho de cascavel. Já fico me imaginando desesperado na hora do nascimento, berrando "Toalhas! Água quente! MAIS ÁGUA QUENTE!" pela casa. Daqui a pouco vão dizer que o bebê é obra da cegonha, e não minha.
Agora tinha outra preocupação, no entanto: panettone com maionese. E onde é que eu ia encontrar panettone dois meses depois do Natal, meu Deus??? Sei que rodei a cidade e acabei encontrando uma bombonière que tinha um estoque imenso de panettones encalhados. E é claro que a loja ficava a um quarteirão do escritório onde trabalho. Que graça teria a vida sem essas ironias, não é mesmo? Lá fui eu para minha casa, triunfante, seis panettones (leve três, pague dois – eu não podia perder essa) e um frasco de maionese na mão. Sentia-me como Ulisses voltando para casa e para os braços de sua amada. Só que minha Penélope não parecia muito disposta a colaborar:
– Hum – disse ela, depois de passar uma enorme quantidade de maionese numa fatia de panettone. – Não é tão bom quanto eu imaginei.
– Como assim, não é tão bom? O que você imaginou?
– Ah, sei lá. Achei que tivesse um gosto mais assim de... De... Ah, sei lá. Achei que fosse mais gostoso. Feito quindim com requeijão.
– Quindim com requeijão??? Isso é bom?
– Não sei. Deve ser, né?
– Ai meu Deus...
– Hum... Quindim com requeijão... Eu preciso comer quindim com requeijão.
– Não precisa nada.
– PRECISO! Senão nosso bebê vai nascer com cara de quindim com requeijão.
– Aí a gente manda ele pro circo.
– Rá, rá... Bobo. Vem cá.
– Pra quê...?
– Vem cá, oras.
– Hum...
– Fala com ele.
– Hein?
– Fala com o bebê.
– Como é? Falar com o bebê?
– É. A Marininha disse que é importante a gente falar com ele. Faz bem para o desenvolvimento da criança.
– Pode ser, menina. Mas não agora. Você está no segundo mês de gestação. Ele ainda não pode ouvir, é só um girino.
– Girino????
– É... – alerta vermelho.
– Você está dizendo que o MEU bebê é um GIRINO?
– Bom, não é bem um girino. Assim, não propriamente dito. Ele só se PARECE com um girino, mas não é um girino. Não se preocupe, ele não vai virar um sapo. Hehe.
– SEU INSENSÍVEL! Você não se importa, você nem quer saber, fica falando que o meu bebê é um... um... um GIRIIIIIIIII...
E desatou a chorar. Tentei consolá-la como pude, o que não foi fácil. Ela dizia que eu não a amava nem ao bebê. Que ia abandoná-los. Meu Deus! E eu que pensava que já conhecia todas as variações de humor possíveis. Bobagem! Grávida ela está ficando mais instável ainda.
E amanhã a família dela vem aqui para o almoço em que comunicaremos a gravidez. Sei não, sei não. Maus pressentimentos.

29.1.03

Oh, meu Deus. Acho que eu devia ter deixado o poodle em casa e mandado minha namorada para um spa ou algo assim. Seria mais seguro. Foi um choque chegar e dar de cara com ela parecendo o Coyote depois de mais uma perseguição frustrada ao Papa-Léguas. Tive que me esforçar para conter o riso ao ver aquela mulher toda estropiada vindo me receber na porta. Coitadinha, parecia tão frágil com aquela tipóia e o gesso no pé! E ainda ficou triste por não termos podido passar o Natal com a minha família. Toda quebrada, e preocupada com essas coisas... Ela pode ser um anjo de quando em vez.
E estava com uma mania nova também. Dá pra saber as estações do ano pelas manias dela. E a do verão é o Elton John. Quando fui para Porto Alegre, ela só conhecia Tiny Dancer, por causa daquela cena do ônibus de Quase Famosos. Não sei o que aconteceu durante minhas quatro semanas de batalha árdua por um contrato, mas quando voltei ela estava alucinada por Elton John. Skyline Pigeon, Goodbye Yellow Bricks Road, Rocketman, Your Song, tudo... Bom, não tudo. Pelo menos ela não fica ouvindo coisinhas chatas como Nikita ou Sacrifice, o que já é um alívio. Mesmo assim, é um exagero. Comprou CDs do cara. Dois DVDs. Fica procurando coisas a respeito dele na Internet. Até parou de me importunar com a velha história do aparelho ortodôntico: Agora diz que meus incisivos separados me deixam parecido com o EJ (que ela pronuncia i-djêi, é claro).
E eu nem posso reclamar da do Elton John. Se eu digo que hospedando o Monty já tivemos o suficiente de bicha inglesa pro resto da vida, ela rebate falando do meu repentino gosto por churrasco. Repentino... Eu sempre gostei de carne. SEMPRE. A viagem a Porto Alegre só acentuou um pouco isso. Digo que ela precisa ingerir proteínas, para acelerar a recuperação dos ossos. Claro que eu sei que ela precisa mesmo é de cálcio, mas é um mero detalhe. E, de qualquer maneira, nem essa demonstração de preocupação a comoveu: Depois de uma ou duas idas à churrascaria, começou a dizer que estava enjoada, que não podia nem olhar pra carne que embrulhava o estômago. "É cada desculpinha...", pensei.
E continuei pensando que fosse uma desculpinha, até uma madrugada em que ela pulou da cama e correu para o banheiro para vomitar.
- Tá tudo bem aí?
- Tá... Tudo bem... [ruídos]
- Tem certeza?
- Tenho.
Voltou para o quarto abatida.
- Você tá grávida.
- E você tá louco. Não começa com brincadeira.
- Não, sério. Você tá grávida. Esses enjôos...
- Nada a ver. Devo estar ruim do estômago, só isso. Se eu estivesse grávida,ia ter desejo de comer coisas esquisitas.
- Talvez isso comece mais tarde.
- Pára. Eu NÃO ESTOU grávida.
- Vai saber! E se seus desejos não forem de comer coisas esquisitas? Essa mania aí de Elton John, por exemplo. Ele é uma coisa esquisita...
- Ai meu Deus... Você quer tanto assim ser pai?
- Não é essa a questão. Estou só fazendo uma observação com base no que tem acontecido. Por que você não compra um daqueles testes na farmácia amanhã, só pra esclarecer isso de vez?
- Esclarecer o quê? Já disse que não estou grávida. Se estivesse, eu saberia.
- Saberia como?
- Intuição. Mulheres têm intuição.
- E homens têm raciocínio lógico. E agora meu raciocínio lógico está me dizendo que há possibilidade de você estar grávida. Compra o teste, vai.
- Se eu comprar o tal teste, você para de me importunar com isso?
- O que você acha?
- Acho que vai ser o único jeito. Mas vamos ter que fazer uma aposta. Se der positivo, você ganha. Negativo, eu ganho.
- Por mim tudo bem. Vamos apostar o quê?
- Oras, o quê! O de sempre...
- Sexo? OBA!
- Sabia que você ia gostar.
- Só tem uma coisa...
- O quê?
- Será que não vai fazer mal pra criança?
- Não enche, me deixa dormir.
Por mim eu passaria o resto da madrugada azucrinando com essa história. Mas o bom senso me fez parar. Não é bom abusar da paciência de gestantes. Pouco depois do almoço daquele dia, a conversa da madrugada já meio esquecida, o telefone toca. Ela. Chorando.
- Blbrfblnbntiiiiiiiiiiiiiivo!
- Calma, menina. Não tô entendendo nada. Respira fundo. Conta até dez. Caaaaaalma... Agora me fala.
- O teste deu positivo! [soluço]
- Teste? Que tes... O TESTE DEU POSITIVO???
- Eu tô grávida! [fungada]
- VOCÊ TÁ GRÁVIDA???
- Vai ficar repetindo tudo que eu falo?
- ...
- Você ainda está aí?
- Er... Tô. É que... Puxa!
- EU SEI! Vem pra cá!
- Estou indo.
Peguei minhas coisas e saí correndo do escritório. Correndo mesmo, esbaforido, e acho que estava com um sorriso besta na cara. Todo mundo me olhando, e eu nem aí. Como é que eu ia ligar pra coisas tão pequenas? Eu vou ser pai!

24.12.02

Quatro dias em Porto Alegre, dormindo num hotel horrível e lidando com o Darcy durante o dia todo. Agüentar o Darcy não é fácil. Anel de ouro no mindinho, camisas e gravatas em tons pastéis, cabelo empapado em gel. E fala com a gente e vai chegando perto. Você dá um passo para trás, ele avança, parece que está dançando. Com a proximidade excessiva, o cheiro do perfume barato que usa, misturado com o dos cravos que mastiga sem parar, faz-se mais evidente. Não é fácil, o Darcy. Mas pelo menos fico um pouco longe da balbúrdia em que se tornou nosso apartamento agora que minha namorada enfiou na cabeça que vai ser decoradora. Ainda descubro quem foi que deu essa idéia a ela. Meu Deus, a mania de limpeza era bem melhor! Tudo bem, tudo bem. Ao menos por esses dias estou livre das loucuras dela. O único problema é essa cidade toda decorada para o Natal. Odeio Natal. Tenho ganas de estapear todo Papai Noel que cruza meu caminho, de sair arrancando e pisoteando aqueles enfeites que as pessoas penduram na fachada das casas. Fico me imaginando andando pelas ruas com uma tocha na mão, queimando guirlandas, renas, papais-noéis. Seria lindo... Mas não posso fazer nada disso, então vou me contendo.
E nem tenho muito tempo para pensar nessas coisas. Negociar o contrato com o Darcy tem sido uma pedreira. Uma hora ele quer descontos absurdos, outra hora quer parcelamentos impraticáveis, depois quer prazos de entrega inadmissíveis. Aos poucos, no entanto, vamos avançando. Eu achava que ia resolver tudo em um dia, no máximo dois, e ter dois dias para conhecer a cidade, mas acho que não vai dar: Os dois primeiros dias foram de expediente até tarde, negociações intermináveis, telefonemas de um e de outro lado, um inferno. Terminado o expediente (lá pelas nove ou dez da noite), só tenho mesmo vontade de voltar para o hotel e tentar dormir. Sim, tentar, porque o lugar parece mal-assombrado. Lembra um pouco o Overlook Hotel, d'O Iluminado. Não, mentira. Eu que não gosto de hotéis. Um medo besta, porém real. Entro no quarto fazendo barulho e acendendo todas as luzes. Sei o quanto isso é ridículo, e jamais faria o mesmo se estivesse com alguém. Sozinho, porém, é melhor garantir que todos os fantasmas tenham tempo de se esconder quando eu chego. Tenho raiva de mim mesmo por agir assim, mas não consigo evitar. Num hotel, qualquer coisinha me assusta. Hoje mesmo: Estava entrando no quarto depois de um dia cansativo, quando o celular vibrou no meu bolso. Meu coração, que eu vinha conseguindo manter num ritmo razoável de bossa-nova, começou um batuque de escola de samba. Ainda bem que o hemisfério esquerdo do cérebro acordou a tempo e mandou o direito calar a boca, se não eu ia gritar ou fazer qualquer outra bobagem. Calma. É só o telefone.
– Alô?
– Oi, sou eu. Que foi, tava correndo?
– Correndo, eu? Não.
– E por que está respirando assim?
– Assim como?
– Desse jeito, oras. Ofegante.
– Ah. Me assustei com o telefone, acho.
– Com o telefone? Eu, hein...
– Como estão as coisas aí?
– Ah, uma maravilha! Minha mãe esteve aqui. Falamos sobre decoração. Ah, estou tão empolgada com isso! A Marininha me disse... (horas de fala ininterrupta) ... E agora tem o Natal e...
– Como?
– Hein?
– Que que tem o Natal?
– Ah. As lojas estão cheias. Fica difícil de achar as coisas e tal.
– Ah, sim. Por um momento achei que você estivesse pensando em decoração de Natal ou alguma coisa assim.
– Eu? Claro que não!
– Ah, que bom.
– Trabalhando muito?
– Demais. Acabei de chegar ao hotel, aliás. Estava trabalhando até agora.
– Puxa, até essa hora... Essa tal de Darcy não deve ser mole, hein?
Esse tal de Darcy, menina.
– O Darcy é homem? Ah.
– Por que o alívio?
– Alívio? Alívio nenhum. Só achei que fosse mulher e...
– ... E ficou com ciúme. Certo?
– Hum. Um pouquinho.
– Como você é boba. Mesmo que fosse mulher, não teríamos tempo para nada. Estamos trabalhando demais para isso.
– Tá bom então. Vou deixar você descansar.
– Estou com saudade...
– Eu também. Por falar nisso, comprei um conjuntinho igual aquele que a
Dona Maria Eugênia usou no dia do desfile...
– Ah, é? Que bom, podemos usar ao mesmo tempo! Será que eu fico bem de calcinha?
– Bobão. Modelo igual, não o tamanho. Vai dormir, vai.
– Vou sim. Com o Darcy.
– ARGH! Tchau!
– Beijo, querida.
– Outro.
Ciúme do Darcy. Era o que me faltava. Mas o telefonema me fez relaxar e até consegui esquecer um pouco que estava em território hostil (um hotel! Meu DEUS!). Ela me faz muito bem, às vezes.

9.12.02

Minha vida é engraçada. Haha. Deve ser muito legal de se assistir. Mas queria ver quem é que tinha coragem de entrar na minha pele por um dia. O último fim-de-semana, por exemplo. As novidades começaram já no fim da tarde de sexta-feira, quando me preparava para entrar mais uma vez no antro de assepsia em que se tornara o apartamento, e em vez disso me deparei com uma balbúrdia de flores, fitas, folhagens, papel crepom, e minha namorada no meio de tudo isso, feliz da vida.
– Oi. Que aconteceu aqui? Cadê aquela limpeza toda?
– Ah, não. Já vai começar a reclamar?
– Não, não tô reclamando! Só comentando. O que aconteceu aqui?
– Vai ter um desfile. Coisa da minha mãe. Só que com aquele negócio todo da reforma não vai poder ser na casa dela. Então resolvemos fazer aqui. Tudo bem?
Um desfile. Um bando de mulheres falando alto, rindo, fofocando, ocupando a sala por horas. Tenho trauma das reuniões de Tupperware que minha mãe fazia em casa, acho que nunca vou me recuperar. E agora minha namorada vinha me dizer que teríamos um revival do inferno em minha própria casa. Que beleza! Mas como aparentemente isso tinha feito bem a ela, dei a única resposta possível:
– Tudo bem, claro.
– Você é um amor. Olha isso aqui.
Entregou-me uma maçaroca de fitas e fitilhos. Comecei a procurar as pontas.
– O que você está fazendo?
– Tentando desembaraçar, oras. Você não quer ajuda?
– Desembaraçar o quê??? Isso aí é um LAÇO!
– Ah, claro. Um laço arrojado.
– Não tem nada de arrojado. É um laço.
– É. É um laço. Puxa, você leva jeito.
– Então você gostou?
– Claro! Muito bonito! – Há ocasiões em que a verdade deve ser suprimida em favor da harmonia doméstica.
– Que bom. Vou fazer todos seguindo esse modelo então.
– Legal. Mas... Hum. E esse desfile, hein?
– Já falei, é coisa da minha mãe. Um negócio de lingeries que ela está começando agora.
– Lingeries, é?
– É. Lingeries. Que cara é essa?
– Cara? Que cara?
– Você pensa que me engana, é? Tá achando que vai assistir o desfile? Pois pode ir tirando o cavalinho da chuva. Marca alguma coisa com o Jair, por mim vocês podem ir até para um bordel. Só não vai ficar aqui.
– Ok, tudo bem.
– É bom mesmo.
– Sua mãe já definiu a trilha sonora?
– Trilha sonora...?
– Sim, menina. Trilha sonora. Já viu desfile sem música?
– Ah, isso aí a gente vê na hora. Ela traz uns discos, eu pego uns daqui...
– Discos da sua mãe? Desfile ao som de Ray Connif e country dos anos 50?
– ARGH!
– Eu posso ficar responsável por isso aí.
– ...
– O que você acha?
– Ok. Tudo bem. Mas se ficar empolgadinho com as meninas, vai ver o que é bom pra tosse.
– Prometo me comportar.
– Prometo tentar acreditar.
Um desfile de lingeries na MINHA CASA! Era bom demais, meu Deus! E, puxa, será que a Marininha ia desfilar? Eu precisava ver a bunda da Marininha. Nada de canalhice, é que aquela cinturinha fina combinada com aquela bunda empinada, puxa, é um triunfo do design! Estimulado por tais pensamentos felizes, comecei imediatamente a escolher as músicas para a trilha sonora. Muito Marvin Gaye, Barry White e Solomon Burke, é claro. Lenny Kravitz, "Again" não podia faltar numa dessa. Trios instrumentais de bossa nova. Uma ou outra coisa de Be-bop. Modéstia à parte, uma bela trilha para o que prometia ser um belo desfile.
No dia seguinte, recebi minha sogra com honras de chefe de Estado. Ela estranhou minha presença, mas foi tranqüilizada pela filha, que explicou meu papel importantíssimo no desfile. Até que colou, mas por via das dúvidas ela achou melhor que eu ficasse atrás de um biombo improvisado com uns panos que ela tinha trazido. Sem problemas, tudo pela causa.
E começaram a chegar as convidadas. Primeiro as amigas da minha sogra: Dona Zefa, pernambucana de uns 50 anos que ainda dá um caldo, Dona Maria Eugênia, que quase não passa na porta, Dona Aracy, simpaticíssima, e várias outras donas de cujos nomes não me lembro. Vieram também as vizinhas de sempre e as amigas da minha namorada, entre elas a tão esperada Marininha. Foram todas para o quarto para as fofocas e os preparativos, enquanto eu aproveitava que estava de joelhos arrumando os fios para agradecer a Deus por tamanha oportunidade. Agradeci cedo demais...
Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, minha sogra veio lá de dentro. Botei a gravação de "Wave" do Tamba Trio para tocar e ela começou a apresentação. Enquanto ela falava, eu aproveitava para ajeitar aqueles fios todos, então não prestei muita atenção no discurso inicial. Quando ela disse "Vamos começar, então", botei pra tocar "Legal Man", do Belle & Sebastian e ela anunciou:
– Na passarela, Maria Eugênia!
E eu pensava:
– Maria Eugênia. Hum. Uma xará. Só pode ser. Meu Deus, que seja uma homônima. NÃO!
Não era. Dona Maria Eugênia toda sorridente com os peitos enormes apertados num espartilho branco. Quando ela fez a volta no fim da passarela e veio na direção do meu biombo, me senti como o iceberg vendo o Titanic se aproximar. Como diria Drummond, nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas.
E assim foi minha tarde de sábado, trocando CDs e vendo aquelas senhoras desfilando apenas com suas roupas de baixo na maior naturalidade. Quando Dona Zefa entrou na passarela num conjunto vermelho, fiquei até feliz. Primeiro porque já era o fim do desfile, e depois porque Dona Zefa dá MESMO um caldo. Pelo menos se comparada às outras top models do Baile da Saudade. E quando todas se preparavam para ir embora (já vestidas, graças a Deus), ela ainda veio elogiar a trilha sonora do desfile e fiquei de copiar uns CDs do Belle & Sebastian para ela. Ah, com esse charme todo eu só queria ter nascido uns trinta anos antes.
É claro que depois que todas foram embora tive que suportar os ataques de riso e a chacota de minha querida namorada. E nem vi a bunda da Marininha...

27.11.02

Fotos! Muitas fotos! Gastei seis filmes e ainda achei pouco. Tenho que pedir ao Jair para digitalizar tudo, e ver se é possível fazer uma animação com uma seqüência de fotos da minha namorada descendo uma duna correndo e acabando de cara no chão. Vai ficar muito engraçado!
Nem eu sabia o quanto estava precisando dessas férias. Uma pena ter acabado, mas foi bom demais. Estou até mais animado para voltar à rotina de me equilibrar entre clientes e fornecedores de oito a dez horas por dia. Sou um novo homem, por mais gay que isto pareça.
Foi tudo perfeito. Minha namorada estava meio quieta, retraída, mas compreendo isso. Mesmo passando por lugares que fazem a gente quase esquecer da vida, deve ter sido difícil para ela deixar de pensar na situação em que se encontra, sem emprego. Fora a raiva que ambos sentimos do ex-chefe dela, aquele crápula. Mas isso é passado, e sei que estará totalmente superado em pouco tempo. E sei também que a viagem fez muito bem a ela: Estava muito feliz quando chegamos a São Paulo, muito animada. Bendita hora em que eu tive a idéia dessa viagem! É tudo lindo demais: Itacaré, Ilhéus, Arraial D'Ajuda, Trancoso, Itaúnas, Guarapari, Piúma, Búzios, Cabo Frio, Rio de Janeiro, Angra dos Reis, Paraty, Trindade, meu Deus! Cada lugar que eu via era uma surpresa maior. Em Trancoso, por exemplo, quando chegamos ao mirante que fica atrás da igreja, fiquei boquiaberto com a paisagem.
– Isso aqui é muito bonito! Olha esse mar! Esse céu! Olha que areia branquinha! Não dá vontade de morar num lugar assim?
– Ahã.
– Podíamos nos mudar mesmo. Largar aquela loucura toda e vir pra cá.
– É.
– Que cê tem?
– Nada.
– Tá tão quieta, desanimada. Preocupada com emprego, essas coisas?
– Não. Não é nada.
– Ah, que bom! Hum... Você tá passando protetor solar? Seu ombro está vermelho.
– Estou sim.
– Ah, então tá bom.
Estranho, porque dois dias depois ela mal conseguia dormir, de tão queimada. Mas comprei um protetor fator 50, um creme para aliviar as queimaduras e ficou tudo bem. Ela ainda teve uma dor de barriga dias depois, por causa de uma moqueca capixaba. Fora isso, tudo transcorreu na maior normalidade. Normalidade? O que eu estou dizendo? Foi excepcional, maravilhoso, único!
Enfim, foi bom mas acabou. Agora é esperar um ano para talvez repetir a dose. Nem penso nisso, no entanto: Minha preocupação é com minha namorada. Ela vive lendo os classificados dos jornais, procura na Internet, envia dezenas de currículos. Algumas empresas chamam para uma entrevista, prometem ligar e não ligam. Às vezes chego em casa e ela está no sofá, o olhar fixo no telefone. Eu tento ajudar, acho que todas as pessoas que conheço já têm o currículo dela em mãos. Mas está difícil. E isso começa a afetar nossa vida. Ela agora resolveu desenvolver uma mania de limpeza. Dia desses cheguei e quase fiquei cego com o brilho do balde de gelo sobre a mesa. O poodle vive pelos cantos, ressabiado por causa dos banhos constantes. Ontem mesmo o gato estava correndo pela sala, num daqueles inexplicáveis surtos de atividade que os gatos têm. Tentou parar antes de chegar à parede, mas saiu patinando e foi bater com a cabeça na porta. Pobre gato. E eu também vivo escorregando nesse piso ultraencerado.
Sugeri que procurasse trabalho em outra área, porque esse negócio de informática é muito estressante, mas ela não mostrou grande interesse. Falei com um amigo meu, dono de um estúdio de gravação, e ele disse que talvez tivesse uma vaga por lá. Ela não se animou muito, mas vai ver do que se trata. Espero que dê em alguma coisa, não suporto mais esse apartamento brilhando desse jeito.

5.10.02

-- Eu sou uma IDIOTA!
Foi o que ela disse quando eu perguntei por que estava chorando. E me contou o que acontecera. Depois que ela terminou, minha vontade era ir até aquele escritório e sair quebrando todos aqueles equipamentos que ela sempre disse que eram caríssimos, roteadores e não sei mais o quê. E então entraria na sala daquele boçal e o faria comer uns bons pedaços de carpete enquanto chutava sua bunda gorda. Todos os funcionários me ajudariam na malhação do judas, e depois o enforcaríamos na... Mas minha namorada precisava da minha atenção, não podia me perder nessas divagações. Fui pegar um copo d'água para ela, que estava arrasada. Apesar do salário não ser grande coisa, ela gostava daquele emprego. Meses atrás, no entanto, houvera uma mudança na diretoria. Na época ela disse que não tinha ido com a cara do novo presidente. E agora sabíamos porquê.
Meu salário seria suficiente para manter o apartamento por algum tempo, se cortássemos alguns luxos, como TV a cabo e internet rápida. Mas não adiantaria falar nada disso para ela: Estava deprimida, preocupada, com medo. Ficar racionalizando a situação só pioraria tudo. Então, em vez de racionalizar, peguei o quadro de camurça onde botamos nossas fotos, um mapa grande do Brasil e meu jogo de dardos. Dependurei o quadro com o mapa na parede e entreguei os dardos na mão dela, que me olhava como se eu tivesse ficado maluco.
-- Era melhor você colocar aí uma foto daquele... daquele...
E lá ia ela chorar de novo. Meu Deus.
-- Nada disso. Você vai jogar os dardos para escohermos o destino da nossa viagem.
-- Que viagem?
-- Ué, estou de férias, você está desempregada. Somos dois vagabundos. Vamos viajar.
-- Mas... Mas...
-- Vai, menina, joga esse negócio. Vi isso num filme uma vez, sempre quis fazer. A gente vai para onde ele cair, não importa onde seja. Que tal?
Isso a fez ficar mais animada: Ajeitou-se no sofá, fez pontaria e jogou. Fui olhar onde o dardo havia caído.
-- Pois muito bem, vá se preparando, porque nós vamos partir para... Deixa eu ver... Hum. Osasco.
Ela pôs o rosto entre as mãos e começou a rir. Bom sinal.
-- Acho que é melhor eu tentar de novo, né?
-- Por favor!
Ela jogou o segundo, mas ainda estava no meio da crise de riso, então o dardo bateu na moldura do quadro e caiu no chão, o que a fez rir ainda mais. Depois de uns minutos rindo, conseguiu controlar-se e jogou o terceiro dardo, que caiu perto de Assunção, no Paraguai.
-- Esse não valeu. Não temos dinheiro para uma viagem internacional.
Piadinha besta, ela não riu. Jogou outro dardo, que fincou-se no acento circunflexo do Oceano Atlântico. Vi o desânimo voltar ao rosto dela.
-- Eu sou uma burra, tá vendo? Nem pra isso eu sirvo. Nem pra acertar um lugar decente num mapa. DROGA!
Jogou o último dardo com raiva. Quase derrubou o quadro da parede quando atingiu o mapa. Desconsolado com o fracasso de uma idéia que parecera tão boa, fui recolher minha tralha e não acreditei no que estava vendo.
-- Até que você não é tão burra assim, sabia?
-- Hein?
-- Arruma as malas. Vamos para a Bahia. Ilhéus.
-- MENTIRA!
-- Pode olhar.
Não digo que ela tenha ficado radiante na hora. Ainda estava sob o impacto de tudo o que acontecera. Mas quando sugeri que fôssemos de carro, sem pressa, parando onde nos aprouvesse, ela quase me sufocou com tantos beijos e abraços. Aquela foi uma noite memorável. Amo essa mulher.
Dois dias depois, já com o Poodle e o Gato hospedados num hotel para animais (com uma diária quase tão cara quanto a da pousada em Ilhéus), as malas prontas e o carro revisado, pegamos a estrada. Quando entramos na Dutra, o rádio começou a tocar Tim Maia:

Ora bolas, não me amole
com esse papo de emprego
Não está vendo? Não estou nessa
O que eu quero? Sossego.


Um bom sinal..

Às vezes parece que o Diabo fica entediado lá no inferno e vem até a Terra para se divertir às nossas custas. Foi o que aconteceu há três di...